Colo de vó

Colo de vó é diferente 
Parece que vem com formato de gente
Acalma, acalenta a alma
Faz a criança sonhar contente

Colo de vó é calmaria
O paradoxo de correria
Faz sonhar, inspirar, respirar 
É caso de estudo na pediatria

Colo de vó é transcendental
Ilegal, imoral, sem igual
Espanta manha com artimanha
Deixa o mundo novo um pouco mais real.

quase manhã.

A louça na pia
abandonada
A gente dormindo
de cara lavada

O café por fazer
filtro sem coador
Estamos só o pó 
passados com amor 

O pão amanhecido
mais casca que miolo 
Você e eu mal dormidos
sovados em dolo

A vitrola desligada
agulha sem disco 
Silenciados
desaturdidos 

A manhã que não foi
acaba que é 
Perdemos a mão 
sem nem estarmos de pé. 

ainda dá tempo.

ainda dá tempo de parar. desligar, pensar, repensar, respirar, tentar fechar os olhos e olhar o nada que a gente pouco se permite ver.

ainda dá tempo de amar. agradecer, esquecer, perdoar, rever e reverter o que passamos tanto tempo dando como irreversível. 

ainda dá tempo de estar. escutar, abraçar, chorar, perguntar, entender, simpatizar e empatizar para além de likes que nem gostamos tanto de dar.

ainda dá tempo de olhar para trás.
para, aí sim, poder olhar para frente. 

em obras.

sete e meia da manhã
quando o sol bate na janela
bate também o andar de cima
é o vizinho que martela

furadeira e marreta
serra circular e lixadeira
os sons se multiplicam
me tirando do sério e da cadeira

o áudio de Zap ficou inaudível
o call parece feito na Marginal
a Makita é tão incrível
que participa do meu call

pode ser estante ou quarto novo
acabar hoje ou ano que vem
talvez até me demitam antes
e eu vire pedreiro também.

parece que foi ontem.

Parece que foi ontem que a gente travou. Que sussurramos desconfiados sobre as notícias no café, que fitamos por horas a tela do celular, que (sinceramente) não botamos muita fé e que pensamos que logo, logo tudo isso iria passar.

Parece que foi ontem que a gente hibernou. Que acabamos com o estoque de álcool gel, que compramos papel higiênico para três anos, que disputamos máscaras na velocidade cinco do créu – mesmo que fosse trapaceando.

Parece que foi ontem que a gente chorou. Que voltamos a assistir ao jornal todo dia, que pedimos aos nossos que se cuidassem, que aprendemos o que diabos é cloroquina e que vimos os médicos em alarde.

Parece que foi ontem que a gente mudou. Que a casa virou escritório, que o escritório virou deserto, que estádio de futebol virou ambulatório e que perdemos a noção do que tá errado ou do que tá certo.

Parece que foi ontem que a gente enlouqueceu. Que assistimos lives até cansar, que fizemos vídeo chamadas sem parar, que pedimos delivery sem conseguir pagar e que adotamos mais um cachorro só pra poder amar.

Parece que foi ontem que a gente normatizou. Que inventamos duzentas normas, que ganhamos os quilos da quarentena, que percebemos que o vizinho do 71 tá sempre em reforma e que o do 62 só assiste o Datena.

Parece que foi ontem que a gente calou. Que perdemos o senso de revolta, que fingimos estar presos, que paramos de olhar em volta e que nos contentamos em ser um pouco menos.

Parece que foi ontem. E ontem fez um ano.

felicidade.

Felicidade é abraço apertado
beijo carinhoso na testa
cafuné alongado
afago inesperado
é coração em festa.

Felicidade é café coado
sorvete fora de hora
bife bem acebolado
queijo levemente tostado
é bolo quentinho na tarde chuvosa.

Felicidade é cerveja gelada
serenata a luz da lua
samba com feijoada
dose que vai em golada
é brinde que se ouve do outro lado da rua.

Felicidade é noite bem dormida
manhã que desperta sem pressa
segunda-feira corrida
sexta desprevenida
é o destino cumprindo promessa.

sau.dade

Saudade é monólogo sem plateia
É convite sem convidado
Seriado cancelado
Lobo desprovido de alcateia

Saudade é buraco que não fecha
Chave sem fechadura
Farelo de rapadura
Arco que não tem flecha

Saudade é espaço sem tempo
Passagem só de ida
Iodo na ferida
Moinho sem vento

Saudade é insônia pra quem dorme acordado
É bolo sem fermento
Liberdade em confinamento
O destino jogando dados.

Louça, sua louca

A pandemia. A crise econômica. As crianças na rua, as aglomerações nos bares, as mensagens de ódio na internet, as partidas de futebol injustificadas, a louça na pia. Sim, a louça na pia.

Dos males que mais me amedrontam em tempos de quarentena, o acúmulo de pratos e copos e talheres é um dos piores. Eu sei que parece exagero – exagero até –, mas a imagem da pia abarrotada me causa arrepios diários.

Primeiro porque estamos mais do que nunca dentro de casa. E o itinerário quarto-banheiro-sala-quarto passa incontáveis vezes pela cozinha. Seja para preparar uma refeição ou beliscar algo na geladeira no meio da tarde, toda passagem por ali vale uma espiada de canto de olho a pia que, invariavelmente, pede por ajuda.

Segundo porque está clara a nossa capacidade sobre-humana de sujar a louça. Aqui em casa somos em dois, mas se você olhar para o acúmulo de utensílios depois de cada refeição, seria capaz de jurar que metade da torcida do Flamengo veio bater uma feijuca em uma terça-feira qualquer.

O que era para ser dois garfos, duas facas e um par de pratos se transforma em um amontoado de objetos que, sinceramente, mal fazem sentido. Não tinha feijão, mas tem uma concha suja; almoçamos lasanha e encontrei dois hashis embebidos em shoyu; não era noite de sopa, mas temos quatro colheres no fundo do lavatório.

É colher de pau, é pia de pedra, é o fim do caminho.

Isso sem falar nas taças e copos. Desconfio que os nossos tenham saído do filme dos Gremlins e, ao receber um pouco de água nas costas, se proliferem em progressão geométrica. Juro que deixei duas taças de vinho em cima da pia na quinta a noite e, quando acordei na sexta, haviam seis. Até cogitei a possibilidade de nossos gatos estarem aperfeiçoando sua técnica em detectar o tanino e as notas cítricas durante as madrugadas, no entanto fui desencorajado.

E enquanto o mundo se preocupa com uma possível guerra entre China e Estados Unidos, eu me preocupo com outro tipo de americanos: os copos. Deixei um na pia e acabei de reparar que eles já estão me encarando em quatro. Seja o que Deus quiser, pra cima deles!

que saudade.

do pingado no balcão da padoca
do cheiro da feira
do colorido da esteira
daquele almoço na Mooca

do churrasco com os amigos
do bom dia do porteiro
do sobrinho arteiro
de passar por aquele prédio antigo

do domingo de futebol
do sábado em volta da mesa
de ir até Santa Teresa
de sair pra tomar sol

de pedir para a mãe fazer pavê
da risada gostosa do pai
de sentir a chuva quando cai
de nós, de mim, de você.